28 de novembro de 2007

As cidades e os desejos 2

"A três dias de distância, caminhando em direção ao sul, encontra-se Anastácia, cidade banhada por canais concêntricos e sobrevoada por pipas. Eu deveria enumerar as mercadorias que aqui se compram a preçoes vantajosos: ágata ônix crisópraso e outras variedades de calcedônia; deveria louvar a carne do faisão dourado que aqui se cozinha na lenha seca da cerejeira e se salpica com muito orégano; falar das mulheres que vi tomar banho no tanque de um jardim e que às vezes convidam - diz-se - o viajante a despir-se com elas e persegui-las dentro da água. Mas com essas notícias não falaria da verdadeira essência da cidade: porque, enquanto a descrição de Anastácia desperta uma série de desejos que deverão ser reprimidos, quem se encontra uma manhã no centro de Anastácia será circundado por desejos que se despertam simultaneamente. A cidade aparece como um todo no qual nenhum desejo é desperdiçado e do qual você faz parte, e, uma vez que aqui se goza tudo o que não se goza em outros lugares, não resta nada além de residir nesse desejo e se satisfazer. Anastácia, cidade enganosa, tem um poder, que às vezes se diz maligno e outras vezes benigno: (...) a fadiga que dá forma aos seus desejos toma dos desejos a sua forma, e você acha que está se divertindo em Anastácia quando não passa de seu escravo." - As cidades invisíveis, Italo Calvino

24 de novembro de 2007

Estrada

A vida definitivamente é uma estrada de muitos caminhos, escrita a areia. É necessário feeling para atravessar incólume por ela e muitas vezes o sentimento de arrependimento, ou a súbita sensação de que uma escolha alternativa teria levado a um local melhor, nos acomete e desejamos retornar. Mas querer dar uma passo para trás é perceber que o caminho não está mais lá: ele mudou com o vento e o que nos resta é andar para frente a procura de outras escolhas, outras dúvidas. Da trajetória que percorremos, não nos resta nada muito além de remorso, dúvida, arrependimento, as feridas nos pés que andaram demais e um futuro inteiro pela frente, até onde o futuro acabar.

4 de novembro de 2007

Pelo dinheiro

Penhorei o coração por falta de uso. A peça era meio antiga mas funcionava com precisão: batia regularmente e, na presença de um rosto mais bonito, se encantava, amava e fazia versos. Mas precisava do dinheiro. A vida tem cada dia me custado mais caro e mesmo as necessidades básicas do hoje foram emendadas em pequenos luxos, para dar uma certa graça em viver. Por alguns poucos tostões furados, deixei na loja, coração por muito inutilizado e cansado de dor.

Quando os problemas financeiros ficaram de lado, resolvi passar na loja para retomar o que me era de direito, pois como se sabe, coração só se tem um e se ganha apenas quando se nasce. Para minha surpresa, o lojista me aparece com uma cara de indiferença e diz: "seu coração foi vendido, senhor. uma menina passou por aqui e o comprou, nem fez questão de saber quem era o dono". Senti angústia, mas não chorei porque levava o peito vazio. Começou então uma caçada pessoal e inesgostável pelas ruas da cidade por uma menina que comprou meu coração (tão barato). A ela, peço que me devolva, por favor. Pago em dinheiro.